diciembre-enero 2023, AÑO 22, Nº 90
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as metamorfoses
Como um filme que necessita de 24 quadros por segundo para que a imagem apresentada se mantenha íntegra na tela e à nossa vista, talvez o ser humano seja uma aceleradíssima repetição de si mesmo que se sustenta em seu espetáculo e visibilidade numa proporção de 100 quadros por bilionésimo de segundo. De modo que, por exemplo, aquele jovem que está entrando pelas portas da discoteca com um colete de explosivos sob o pulôver negro continue pacificamente a ser aquele jovem que está entrando pelas portas da discoteca com um colete de explosivos sob o pulôver negro, e aquela pálida garçonete atrás do balcão de um café do aeroporto aguardando apreensiva a aproximação da mãe de seu namorado que se atrapalha toda com a bolsa de onde retira uma pistola 9 milímetros continue a ser nada mais do que aquela pálida garçonete atrás do balcão de um café do aeroporto aguardando apreensiva a aproximação da mãe de seu namorado que se atrapalha toda com a bolsa de onde retira uma pistola 9 milímetros, tudo de forma íntegra e ininterrupta. Ou quase. Pois assim como a diferença ou sabotagem em um único fotograma entre os 24 que deslizam divertidos ou solenes por toda a extensão de seu mísero segundo cinematográfico não chegaria a alterar a imagem que vemos na tela, dada a precariedade do poder de percepção de diferenças de nosso humano olhar, a possível metamorfose daquele jovem de pulôver negro explodindo dentro da discoteca, ou da pálida
garçonete atrás do balcão com o peito perfurado por uma bala 9 milímetros, e mesmo considerando-se a possibilidade de uma metamorfose extremamente esdrúxula como em boi, tapir ou bebê Radinbranath Tagore, desde que limitada a um único quadro entre os 100 daquele bilionésimo de segundo, não seria captada por nosso precário sistema retiniano, e só lograríamos perceber de fato a fenomenal e invejável continuidade do pulôver negro do jovem entre os destroços de discoteca e gente recolhidos pela polícia e transportados para a calçada cheia de vento e do piercing sobre o lábio da pálida garçonete caída por trás do balcão sobre uma poçazinha de sangue. Num concerto em homenagem a Witold Lutoslawski, contudo, o anjo boxeador logrou perceber diversas metamorfoses da pianista Martha Argerich em cervo negro, dia de inverno, borra de vinho, chuva de ouro e outros prodígios incontáveis, metamorfoses essas que, entretanto, não chegaram a durar nem um bilionésimo de nanossegundo, o que permitiu que para os outros espectadores aquela bela criatura de longos cabelos ao piano continuasse a ser durante todo o transcorrer do concorrido espetáculo a renomada pianista argentina Martha Argerich.
(Carlito Azevedo, Monodrama)